quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Relação entre histórico e literário: realismo e literariedade

Osvaldo,

Suas dúvidas que permaneceram após o curso sobre Literatura Portuguesa Medieval deveriam ter sido colocadas ainda no período letivo, para que os outros alunos pudessem aproveitar e dizer algo.

A poesia palaciana é um flagelo do trovadorismo, ou o que restou dele. A estrutura reiterativa - isto é, a que contém repetições frasais - já era uma sofisticação trovadoresca, com seus refrões e bordões, além de palavras ou expressões distribuídas mais de uma vez no poema.

Desligar-se da música representou perda multimidiática, restando-lhe apenas interconexão com o teatro, por causa da performance.

De fato é um declínio a passagem do trovadorismo ao palacianismo, não só pela perda da relação com a música. Os trovadores participavam de um movimento internacional, que incluía até mesmo idiomas fora da latinidade, como o árabe e o alemão. A lírica, nesse momento, vivia a apoteose formal e conteudística. Pela forma, basta verificar a quantidade de recursos poéticos usados pelos trovadores e comparar com os dos palacianos. O trovadorismo conheceu centenas de técnicas formais, divididas entre as de cunho meramente estrutural e as que montavam o famoso sistema da vassalagem amorosa, o que significava uma visita na área conteudística. O casamento entre forma e conteúdo, o pensar poético integrativo, começa desde aí no trovadorismo. Pela parte conteudística, os trovadores cantavam a consumação amorosa ou a persistência contra os rejeites da amada (mia senhor) e os entraves contextuais (os delatores) para atingir a realização amorosa. Em ambos os casos, verifica-se a positividade, o triunfo do espírito na realização de interesses humanos dos mais elevados, a começar pelo maior deles: o amor. A esperança não se extraviou em utopias, decepções ou desistências. Todo o cantar de sofrer antecipava um cantar d'amor: servia apenas para contar a luta árdua e tenaz até o consentimento de mia senhor. Totalmente diferente é a poesia palaciana: voz da decepção, testemunho do fracasso, desilusão amorosa. No palacianismo, o sofrimento e a solidão são o destino do homem, o último estágio, a estação final de um trem repleto de amarguras. O telos - o fim enquanto finalidade, objetivo e destino - é, pois, derrocada, declínio; e na dobra eterna e natural com a arkhé - o início enquanto fundo, fundamento e origem - a poesia palaciana se constitui, do início ao fim, do fundamento ao fundado, uma circularidade essencialmente negativa: a falência do homem, o esgotamento de seu vigor. Traz uma essência de destruição do homem, no envio do "sospirar", já que o homem se constrói na luta incessante contra a derrota. O homem perde algumas batalhas - como o trovadorismo mostra - mas vence a guerra: o saldo entre perdas e ganhos tem que ser positivo. Na poesia palaciana, o homem é derrotado. Vivêssemos um mundo de frustração amorosa, a dor, a melancolia, o suicídio tomariam conta da realidade - e isso no âmbito do amor erótico apenas, pois se falarmos do amor universal, restaria o apocalipse e o mal em tudo. Até no sentido literal o homem morreria, pois sem a consumação do amor erótico, cessa a reprodução da espécie.

O fato de ser a poesia palaciana recitada em lugares do mais alto prestígio social interfere apenas na literatura como sistema, como instituição social (produtor, circulação da obra, público leitor). Enquanto sintoma periférico, apenas assinala a contradição entre o poético e o histórico, que em outro momento podem se conciliar. Mas esta informação não ajuda na compreensão da obra, somente no seu diálogo com o contexto histórico. Podemos e devemos conhecer o contexto histórico para justamente marcar a diferença dele com a obra de arte, embora possam parecer iguais em certas ocasiões. Se o contexto histórico aponta para o crescimento civilizacional em contraste com a tristeza da poesia palaciana, podemos concluir que a produção literária mais afinada com o seu tempo e os interesses humanos dessa conjuntura é, sem dúvida, o teatro, que conhecerá seu auge com Gil Vicente.

À margem do alto cânone, as novelas de cavalaria atravessaram toda a Idade Média. Como forma bastante popular, permaneceu ligada ao espírito do povo durante séculos. Por quê? Ora, o espírito humano não se dedica à extinção, à morte, à derrocada, e as novelas cavaleirescas sempre trouxeram o sentido de vitória e triunfo, mesmo diante de poucas ou muitas perdas, poucos ou muitos desafios.

A mudança de mentalidade não só provoca, mas é mudança de Linguagem. Aqui você precisa compreender a pluralidade e a dinâmica do real, para perceber que a marcha da história não faz o homem, mas o homem faz a marcha; que o contexto não molda o homem, mas o homem vive o contexto. Havendo toda a diversidade humana, a atuação de cada pessoa diverge da outra, e só coincide em alguns aspectos. Quando há essa semelhança, formam-se grupos, cada qual reunido por interesses comuns dos participantes. Os diveros setores da sociedade agem diferentemente, de acordo com seus valores, no limite imposto pela lei (pacto social) vigente em dado espaço-tempo. O contexto influencia, mas não determina a obra de arte. A razão do poema está entre texto e contexto. A influência do contexto aparece implicitamente na obra através do vocabulário. Se não houvesse pontos de contato com o real, a ficção não conseguiria comunicar nada. A teoria da informação já demonstrou que um repertório 100% desconhecido não comunica, pois a novidade precisa ser transmitida com apoio dos conhecimentos já consolidados no receptor. A poesia palaciana proclamou o declínio do homem num momento de crescimento humano, por conta do contexto? Veja que não há condições de sustentar uma respota afirmativa. Aqui é necessário compreender a questão da "criação poética". A obra de arte é uma criação desrealizante com base no real, que parte do histórico para o ficcional. Faça o curso "Realismo ou mimesis" agora em outubro para compreender a relação, no caso a dialética entre real e ficção.

A relação entre história e literatura no período específico da poesia palaciana segue algumas regras gerais e produz particularidades. A regra geral consta já no parágrafo anterior: o contexto influencia, mas não determina a obra de arte. Quanto mais fictícia, quanto mais desrealizante, mais densa, mais intensa é a obra literária. "A psicologia da composição" é alta literatura, mas "Canção do exílio" é baixa literatura. Os elementos contextuais do poema de João Cabral aparecem em quantidade quase ZERO, enquanto os elementos contextuais do poema de Gonçalves Dias aparecem em quantidade quase 100%. A ficção advém, como quase sempre na expressão romântica, pelo exagero sentimental, responsável pela distorção das coisas, pela desrealização. Trata-se, como se vê, de uma desrealização bastante pobre, principalmente no tema nacionalismo. A regra particular no período da poesia palaciana é assinalar que mesmo diante do progressismo, a lírica declinou. Você pergunta "em que medida o contexto não determina o período literário?". Está bem claro que não determina. Mas influencia? Claro que sim. De que modo? Fornecendo os referentes, para a construção do universo léxico. Esta é a verdadeira relação do período histórico com a literatura, tanto para esta época, como para todas as outras.

A relação entre referentes distribuídos no histórico e referentes distribuídos na obra é responsável pelo realismo. Os referentes do contexto histórico serão transformados na obra literária, ganhando autonomia. Passarão a ser referentes fictícios, embora oriundos do real histórico. Outros referentes, como os personagens, são fictícios na sua origem, cujo contato com o histórico não existe ou é extremamente alterado. A literariedade não exclui a mimesis (criação realista). Muitas vezes a desrealização opera no próprio processo de referencialidade, conservando a aparência de contexto histórico, mas na dinâmica entre seres e coisas difere totalmente da história. Nesse caso, a superficialidade engana: parece contexto histórico, mas por dentro de cada personagem e de cada paisagem acontece uma tranformação radical, de acordo com o pensar poético projetado neles. Por isso, é impossível beijar Gabriela, cravo e canela. Ela é fictícia, embora de origem histórica, e por dentro já se tranformou em outro ser, diferente da sua fonte inspiradora.

O realismo nunca foi retrato da época, porque sempre manteve alta literariedade, alta função desrealizante, embora superficialmente transparecesse a preservação histórica. É este jogo ambíguo, enganador, que caracteriza o realismo: dá a impressão de telejornal de uma época, de um registro histórico, mas não é. É possível aproveitar alguns elementos paisagísticos para recompor a época, mas a obra não é essa recomposição. E o estudo literário também não é a recomposição da época: isto quem faz é o historiador, e não o crítico ou o teórico da literatura.

A diminuição da literariedade é característica marcante da Literatura Contemporânea, mas essa baixa literariedade não se vê no realismo, muito menos no Naturalismo, pois este altera a realidade porque imprime nela um sentido determinista, fatalista e pessimista que a realidade não tem - e daí aumenta a carga fictícia.

Sua pergunta acerca da literariedade e do realismo ressalta uma verdade nos estudos literários. Como exercício judicativo, a crítica literária sempre foi excludente e totêmica: o seu instrumental teórico, desde sempre, hierarquizou a literatura em alta e baixa, alegórica e simbólica, complexa e simplória, etc. Por exemplo, a prosa sempre existiu, como você pôde ver no curso Literatura Portuguesa Medieval, quando se tratou das novelas de cavalaria. Mas esse gênero sempre foi desprestigiado, em favor da poesia, produção em verso dos três antigos gêneros (lírico, épico e dramático). Na época em que Aristóteles elaborou essa divisão tripartite, excluiu a prosa. Para a visão da época, a literatura era feita em versos, o que predominou durante a Idade Média e o Classicismo. A prosa só ganhou espaço com o romantismo, ou melhor, com o pré-romantismo. Hoje, já inserimos a prosa no cânone literário, mas o teatro é quase sempre esquecido. Nesse movimento de hierarquização, a poesia surge como alta literatura, com mais literariedade tanto em nível formal como semântico, e o romance estaria abaixo dessa perfeição. Essa constatação só vale em linhas gerais, pois Grande sertão: veredas tem mais literariedade que os poemas de Gonçalves Dias, portanto seria mais poesia do que a obra desse romântico. Inclusive por isso já estão chamando Guimarães Rosa de poeta, no sentido de que sua obra tem alta carga de literariedade.

A literariedade é então a desrealização, que rompe com a camada linguística e corrompe a relação entre significante e significado. Em nível formal, provoca a ficção, que transforma os referentes do discurso em entidades autônomas - embora às vezes dialogantes - frente ao real histórico. Em nível conteudístico, a desestabilização entre significante e significado produz a plurissignificação. Acontece que os sentidos superlativos dessa plurissignificação não são percebidos pela maioria dos leitores. A tarefa da hermenêutica é acessibilizar ao leitor os sentidos mais elevados do texto literário, em geral escondidos na metáfora.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Cursos de Extensão 2012.2

O CPLetras - Centro de Pesquisa em Letras informa os novos cursos coordenados e ministrados pelo Prof. Camillo Cavalcanti:

17, 18, 19, 20/09/2012 - Pontos de Filosofia da Mente (14h-18h, sala 4, Módulo I)
Estrutura:
horário: 14h-18h
carga horária: 20h (16h de conferências + 4h de relatório do cursista)
local: sala 4, Módulo I

Programa:
17 - João de Fernandes Teixeira
18 - Neurolinguística e Ciência Cognitiva: John Searle, Noam Chomsky e outros
19 - Física Quântica e Filosofia da Ciência: Einstein, Hawking, Cassirer, Bergson
20 - Idealismo, Fenomenologia, Ontologia: Schelling, Husserl, Heidegger, Jasper

24, 25, 26, 27, 28/09/2012 - Eduardo Portella, 80 anos
Estrutura:
horário: 13h-18h
carga horária: 30h (25h de conferências + 5h de relatório do cursista)
local: sala 4, Módulo I

Programa:
24 - Dimensões
25 - Teoria da comunicação literária
26 - Fundamento da investigação literária
27 - Confluências, Literatura e realidade nacional, Vanguarda e cultura de massa
28 - Democracia transitiva


01, 02, 03, 04/10/2012 - Realismo ou mimesis
Estrutura:
horário: 14h-18h
carga horária: 20h (16h de conferências + 4h de relatório do cursista)
local: a combinar

Programa:
01 - Gnosiologia antigo-grega
02 - Ontologia do real
03 - Epistemologia do Realismo como categoria literária
04 - Gustave Flaubert e Machado de Assis